domingo, julho 26, 2009

de noite no leme


a rua de baixo de casa. ela na janela tem mar.

terça-feira, outubro 10, 2006

ligação

- redação.
- oi.
- então, tem que ter frisson.
- é...
- claro. no meio da sua confusão, vc tem que sentir pelo menos frisson.
- não sinto.
- não sente?
- nem admiração.
- então sinaliza.
- agora?
- isso.
- beijo.
- beijo, tchau.

segunda-feira, outubro 09, 2006


hoje o coração escorreu pelo chão da sala, no ritmo do bolero. o silêncio entrou quebrando tudo e rasgou as cortinas. a saudade ficou derramada em frente à porta e é como se fosse preciso um barco para chegar do lado de lá sem se molhar. estar molhado de saudade na rua esfria os ossos.

sábado, setembro 23, 2006

Deslembrança


Reuniu os ontens num canto da sala. Decidiu guardá-los ali para evitar os tropeços. O tempo em que ela prendia os instantes entre os dedos como se fossem borboletas pegas no ar havia se encerrado. Fazia questão agora de que todas fossem um sem-fim de indo-e-vindo desprogramado. Assim, Alice voltava a praticar o hábito de criança, quando escondia flores entre as páginas dos livros. E lá elas ficavam para que fossem, vez ou outra, a sutil surpresa no ato da decisão de ler um poema. Alice, menina, bem sabia em que livro estava a margarida descolorida ou a sempre-viva roxa desbotada. Mas pregava-se a peça de fazer de conta que já não se lembrava para achar encanto na florzinha (re)encontrada.
Agora, era assim com os ontens: guardou-os num canto, como se os escondesse de si mesma. Desaprendia que eles estavam lá e logo se tornavam flores dormindo dentro do livro.

quinta-feira, setembro 21, 2006


Caro Rodrigo,
Blue in Green chegou pontual, à 1h, no quarto andar da Folha de S.Paulo, depois de apanhar chuva na avenida Ipiranga, arriscando o caminho mais curto. Sim, é setembro e chove em São Paulo. Com gotas dançando sobre o casaco de lã escuro, Blue in Green foi pontual, exata, precisa, adequada - quase conveniente. Deixou tudo em preto e branco, autorizou o cigarro na redação, vestiu chapéus e paletós mal-cortados nos repórteres. Sobretudo e boina de lã, o crítico de cinema baixou o olhar quando cruzou com ela, infame e elegante, atravessando o corredor em direção à mesa em que eu a receberia. Sentou-se - não pediu cadeira, acomodou-se na própria mesa. Ultrajante, os cabelos compridos pingando sobre meu bloco. Borrou a tinta das anotações, desleixada, inquieta, imprudente. Orquestou as máquinas de escrever com os olhos verdes, cinzas pela chuva. E era como se todos obedecessem sua composição, escrevendo pausados entre o trago e o café. Blue in Green, sentada, olhos fixos em nada, derramando-se no chão.

(ao amigo Rodrigo, que nos apresentou)

segunda-feira, junho 12, 2006

Ela tem bons motivos

Porque ela queria ser passarinho e ter coração verde. Porque ela queria dançar sozinha, porque ela sempre sonhou ser bailarina. Porque ela vestia o melhor vestido - jardineira, a mãe dizia - e os brincos de pérola da avó para ir às aulas de música. Porque ela espiava as moças do piano e tentava ser como elas - mas as teclas eram duras e grandes demais para seus dedos de menina! Porque ela sonhava ser o que é. Porque ela esperava que tudo fosse ser perfeito, mas não foi. Porque ela pediu uma fantasia de borboleta com asas de tule amarelo. Porque ela ganhou sapatilhas de fita de cetim e só fez pas-de-deux sozinha. Porque ela tinha máquina de escrever desde criança e, quando faltou papel, ela escreveu na parede. Porque ela tem caderninho de poesia, dois irmãos e saudade todo dia. Porque ela dorme num ventinho, namora uma estrela e tem janela comprida. Porque seu nome é outro dia. Porque ela não pergunta o motivo, porque bonito é não fazer sentido. Porque ela queria ser poetisa, passarinho, estrela ou bailarina. Porque ela queria guardar o mundo inteiro numa caixinha e gritar lá dentro que gosta mesmo é de saber que tudo o que ela quer se realiza.

terça-feira, maio 30, 2006

La rêveuse

É torto o canto do mundo onde Bárbara mora. Feito um labirinto é o quarto onde ela dorme. Quando ela sonha, no outro canto, faz-se um livro. Bárbara não sabe que, em seu labirinto, escondem-se os livreiros ladrões de sonhos. O labirinto de Bárbara arde quando ela mastiga nuvens e sonha sonhos que os livreiros roubam e carregam para o lado de lá. É torto e claro o canto do mundo onde Bárbara mora e sonha.
Tem estrela durante o dia, mar que não tem maresia, noite que aumenta quando o sono é maior. Bárbara tem cabelos longos que se enrolam no labirinto e ajudam a encontrar o caminho de volta. É bonito e distante o canto do mundo onde bárbara sonha e os livreiros se escondem.
Do outro lado, tem papéis que andam sozinhos entre as rotativas. O canto é sujo de tinta preta e aquarela. Não tem labirinto: só um caminho único que termina nas pilhas de livros prontos com os sonhos de Bárbara e das outras meninas dos outros cantos.
Os livreiros não sonham. Esqueceram como se faz. E também não lêem os sonhos depois de prontos para não se deixarem levar. Na pilha de livros começa o meio do mundo: é lá que os homens vão buscar os únicos sonhos que as meninas sem labirinto poderão sonhar.
É torto e doce o labirinto onde Bárbara dança com o vento, tem estrelas noite-dia e mar sem maresia. Ela não sabe que, quando sonha no seu canto, faz-se um livro do lado de lá para outra menina sem sonho sonhar.